§Anche le statue muoiono
A estátua que queria entrar para a História
de Carlos Canhameiro

A melhor maneira de medir uma árvore é derrubando-a[1]

Rígida e fria, eu sou uma estátua. Uma estátua esquecida no meio de uma praça. Uma praça esquecida no meio de um bairro. Um bairro esquecido no meio de uma cidade, rígida e fria. Toda a minha consciência vem do presente, do presente que recebo de alguém que sobre (ou por) mim escreve. Não há porque fingir outras possibilidades; como estátua, rígida e fria, em cima de um pedestal de concreto fincada na terra, o que poderia eu pensar senão o presente de alguém pensar por mim? A minha espera sempre foi anterior a tudo e a minha função nunca me pertenceu porque, rígida e fria, imóvel à custa do concreto, do bronze, do estanho e do chumbo, são os outros que me fazem funcionar. E o meu pensar também é dos outros, cumprindo a função descrita um pouco antes. Mas esquecida, nenhuma função os demais me doam porque mesmo para servir é preciso ser lembrada. Sou apenas vítima do tempo, da meteorologia, dos desgastes inexoráveis… Desmoronar não posso, talvez com a benção dos movimentos das placas tectônicas, mas as terras onde estou cravada – ditas o antigo jardim de deus – estão deitadas em berço esplêndido e servem de leito para um gigante adormecido. As placas tectônicas por aqui não sambam. Então, só me resta o sereno, a bosta dos pássaros na cabeça e o mijo dos cães e andarilhos no meu pedestal. Não posso deixar de ser estátua, meu criador não me deu esse sopro. Ele não tinha esse dom e nem ao menos foi agraciado com verba suficiente para me erigir com o mínimo de decência. Sequer a placa com o meu nome e as datas de início e fim da minha jornada, móvel e ilusoriamente livre, foi fixada no suporte de concreto. Ao deus desconhecido, há quem possa dizer! Não, sou uma estátua rígida e fria, esquecida no meio de uma praça que um dia já levou o meu nome e hoje, apelidada pelo populacho, é conhecida apenas como Praça da Estátua.
Não sou pequena, faço inclusive sombra a quem, na lassidão do sol, vem descansar suas mágoas ébrias e suas carências de lar – os mesmos que não raras as vezes mijam nos meus pés. Não sou um busto, ainda que esquecida, tenho dimensões contrastantes com o próprio tamanho da praça. Sou, na verdade, invejosa.
Aquele que se serve de mim agora para me dar uma função poderia me fazer, com sua pena criativa, ao invés de cobiçosa, uma narradora do tempo que sou testemunha desde a minha criação num ateliê mal-ajambrado. Usar os meus olhos para falar do bairro, dos efeitos do progresso – o fato de ser rígida e fria me impedem de rir. Progresso de desconhecimento do antes e até mesmo do hoje. Não, aquele que se serve de mim não me quer testemunha de nenhum caso passado, nenhum relato ao redor, nenhuma tentativa de humanizar a experiência esquecível que recobre toda a minha praça, todo o meu bairro. Não, ele me quer pensar. Sem saber o meu nome, o meu passado em vida, a minha saga construída, nada. Agora eu sirvo, rígida e fria, como contraponto da malícia dele ao me fazer pensar como viva. Invejo. É essa agora a minha serventia.


Aquilo que está em pé e sempre pode cair. A grande estátua do homem bárbaro… É bem provável que não seja esse o melhor adjetivo para acompanhar… Se poderia aventar que ao usar o substantivo HOMEM, aquilo que o acompanhasse como predicado seria sempre uma redundância atroz: se homem, logo bárbaro. Se homem, logo frio. Se homem, logo violento. Se homem, logo fleumático. Se homem, logo nem todos. Se homem, logo logo ele apresentará a outra face – e será sempre a pior. Retorno. A grande estátua de um homem cruel. Impiedoso, talvez. Sanguinário, sádico, mortífero. Cumpriu esse homem uma função ou foi a função que o cumpriu? De qualquer forma, a grande estátua do homem que cumpriu suas funções, que eram destruidoras, corria agora o risco de ser vítima de sua própria sanha. Era exatamente isso que a estátua esquecida da praça esquecida, invejava.


Ela estava lá, sentada. Era uma dádiva do criador, como aquelas estátuas imortalizadas em poses valentes sobre os cavalos. A estátua está sentada há quase 100 anos. E por isso acredito que ela sofria da mesma transparência que a maioria das minhas compatriotas sofrem. Trata-se de uma tal simbiose com a paisagem, um tal embotamento dos olhos dos transeuntes somada à prática cotidiana da invisibilidade, que a estátua então não é mais vista, notada, não é nem ruído. É uma nuvem que passa, que deforma e forma sem testemunhas, uma ilusão. Mas se há na história quem recebeu anjos para ser sequestrado da esquecitude, há também para as estátuas outra espécie divinal que serve ao mesmo fim: os artistas contemporâneos e suas performances inscritas na subversão tradicionalista. Um balde de tinta vermelha e lá está, do nada à re-existência. A estátua sentada e esquecida há quase um século, agora manchada pela falsidade que sua própria representação goza. «NÃO ESQUECEREMOS», bradam. É justamente isso que invejo.
Não precisa ser a tinta sanguínea de algum animal sacrificado ou a marreta violenta, ainda que a ideia de uma corda em meu pescoço e ser lançada de uma ponte sobre o rio Tietê me faça quase tremer de alegria. Poderia mesmo ser agraciada por um grafite bem humorado – não confundir em servir de suporte para o tal pixo sem qualquer traço de cuidado. Ou quem sabe um colete salva-vidas em tamanho gigante amarrado no meu pescoço, uma máscara de proteção… Por que não um grupo de pessoas nuas em dança ritualística à minha volta? Alguém que simulasse uma felação em minhas dobras de cobre, estanho e chumbo; ou que esfregasse o pênis na minha cara, cavalgasse no meu colo, algo que rendesse uma foto viral, um vídeo internacional, um meme (sonho!). É preciso dizer que a minha existência esquecível não goza de parâmetros de escolhas refinadas de como proceder para ser lembrada. O meu desejo, expresso pelo outro que faz uso da pena, é movido pela inveja, que atira flechas a esmo e sabe que quando encontrar um alvo, bastará então pintá-lo. Se devo a minha imortalidade mensurável ao artista que me forjou, anseio pelo débito de ser resgatada, pelos artistas contemporâneos, do esquecimento comum às periferias.


A História é muito complexa, e as estátuas são a pior forma de contá-la, diz a historiadora americana Manisha Sinha (2020). A estátua que queria entrar para a história não existe no campo do real e sua suposta crônica quem conta não é ela, nem eu, de certo modo – já que emprestei do mundo seu enredo. A queda desse monumento fictício, rígido e frio, poderia ser o ápice da falsa narrativa, e a turba ensandecida no seu entorno, uma espécie de arrebatamento dramático-histórico. Mas não, a história não pode ser confundida com a ficção e sua estrutura móvel. Porque, mesmo que a primeira seja fruto de eventos reais – ainda que questionáveis, a ficção e seus avatares primordiais – a memória, e sua volatilidade, em conluio com a imaginação, e suas infronteirices – não pode carregar a História nas costas. A História não é uma mera pedra na paisagem (Young, 1994), tal qual os monumentos. «De vez em quando Deus me tira a poesia. Olho pedra, vejo pedra mesmo», poetizava Adélia Prado (2001), e talvez as estátuas devessem sofrer na mão do deus adeliano e então serem abençoadas com a perda de toda a poesia/história que elas carregam e/ou suscitam. Mas a História também não é poesia e deus não age sobre ela.
Aqui, na história do presente, do hoje, quem do passado queremos colocar no banco dos réus? E quais penas eles deverão cumprir? E depois? Esperaremos uma reparação da destruição ou será mesmo melhor destruir qualquer possibilidade de reparação? A justiça histórica é sentenciada por qual juiz? A coruja de Minerva hegeliana irá alçar voo em qual fuso-horário? Serão, por acaso, os colonizadores que nos ensinarão a descolonização?
Não, decididamente a história não pode atender a todas as demandas. Nem controlar todas as ações do presente. Afinal, poderia o passado ser julgado e condenado pelo presente e dialeticamente ser absolvido pelo seu zeitgeist sob o olhar desse mesmo presente condenatório? Então, se o passado não pode ser mudado e sua absolvição permite sua continuidade sub-reptícia, que jogo é esse que inventamos para fugir do futuro? E depois do futuro do filósofo Bifo (Berardi, 2019) qual presente nos espera? Ou seria o futuro uma vítima inocente desse processo, ou apenas uma reverberação de legítima defesa? Se for posta em prática a ideia deplorável de que é possível apagar a história, nesse caso, o sucesso de tal empreitada será, salvo engano, ainda História, não? Porque mesmo não apagando os erros do passado seguimos cometendo-os. E isso atesta o quê? Nossa burrice hereditária?
Quando iremos derrubar os homens antes de se tornarem monumentos?


Os homens da lei cercam o monumento do gigante homem apoiado em seu mosquete que hoje serve apenas para representar sua impossibilidade de defesa. O estatuto da humanidade permite aos olhos serem testemunhas de cenas que são definitivamente duras de figurarem dentro dos ditames da verossimilhança. É preciso ter olhos para ver esse grupo de homens armados, cujos ordenados, os figurinos e as armas são frutos do dinheiro público, manejados pelo poder público, ambos: dinheiro e poder, dados pelo público (a palavra sem conexão com a realidade lógica) para proteger uma estátua – criada também com verba pública – contra o ataque público da reparação histórica. Vigília dos homens que compõem o braço armado do Estado para proteger um ser inanimado. O vândalo do passado, com seu rastro de morte e brutalidade, é ostentado hoje em toneladas de pedras e ferro. Impávido, sendo resguardado pelo Estado – aquele mesmo que o incumbiu (e o remunerou) de ser vândalo no passado. Protegido dos vândalos do presente que vieram cobrar uma dívida histórica cuja cotação o mercado financeiro de capital especulativo não sabe calcular.
O gigante bandeirante [2] vive hoje encurralado no meio de um arremedo de praça, anexa à cidade rígida e fria. É monumental para quem desvia o olhar de dentro dos ônibus –  que passam incessantes pelas duas avenidas que oprimem o projeto heróico transformado em fantoche, segundo o crítico (Coli, 2020). A estátua do bandeirante Borba Gato, obra do artista Júlio Guerra, está sozinha no arremedo de praça, sem bancos para os transeuntes que, pelas suas calçadas, quase nunca grassam. Na comédia brejeira é impossível não rir do tamanho do homem que precisa da escolta do braço armado do Estado para não ser tombado. Definitivamente sua queda seria um estrago. Mas não há dúvidas que haveria um número maior de indignados ao ver derrubado um monumento – de gosto duvidoso cujo passado faz dele um ser abjeto – do que se o mesmo braço armado do Estado arrebentasse os ossos, a pele e a carne de um ser humano, especialmente de cor preta; talvez pela simples tentativa desse ser humano de “vandalizar” o pétreo bandeirante – muitas vez nem por isso. O monumento é história, a carne que sangra da pele preta, não.
Borba Gato não fala, não vê, não se defende de nada. O que é seu está no passado. Agora é um boneco, uma marionete cujo gosto popular não consegue às vezes ultrapassar a crítica moral e/ou estética. Um dos policiais chora de emoção diante da grandiosidade da estátua e da magnitude da sua história. Qual história?, pergunta o jornalista. E o policial só chora. O choro de um homem do braço armado do Estado é monumental e comovente. Já o senhor cuja atenção foi atirada pelas câmeras, só se ofende. Não com a história da estátua, que desconhece. Se ofende sobretudo com a feiura da obra, reflexo eterno da nossa política, diz performando um sábio. Borba Gato cercado pelo braço armado do Estado não tem o mesmo receio da professora Sandler (2020), de que as gerações futuras poderão simplesmente olhar para uma enorme estátua, como ele, e pensar: nossa, ele foi um herói! Uau, ele definitivamente fez algo valoroso! Apesar de Borba Gato também ansiar ser novamente olhado pelo transeunte desavisado. Vítima da selfie, o bandeirante de pedra hoje é também descanso de tela e nem sabe ao certo se o público precisa sempre ser tutelado sobre o certo e o errado, como ele pelo braço armado do Estado.


Condenada ao esquecimento, o que as minhas atrocidades ou glórias passadas representam ao olhar que não irá me atingir? Que sentido carrego sem o halo das minhas conquistas e selvagerias? Ao me esquecerem não sirvo nem para reparar as minhas glórias ou atrocidades. Me reparem. É só o que peço. Eu poderia mesmo reconhecer e admitir as duas, as glórias e as atrocidades passadas, e lançar mão de qualquer retórica cínica sem oferecer nenhuma ajuda no presente, o que acham? Afinal, quem pagou ontem pela minha existência em cobre, estanho, chumbo num pedestal de concreto,  que arque com o auxílio para o hoje. Me reparem. Ora, não seria justamente a reparação dos meus atos passados a ajuda no presente? Não me deixem só. Ou então destruam todas as estátuas, monumentos, bustos… Vamos camaradas, não sejam seletivos agora. Abaixo os monumentos e os valores indecentes pagos aos artistas para elevação de totens imorais, fascistas, racistas, misóginos… Me reparem para que eu possa cair junto das minhas irmãs estátuas. TODAS. Eu abraço a sua luta. Contra o capital, que mata e paga suas desculpas. Que derruba monumentos e edifica shopping centers. Companheiros, me reparem. Eu pouco me importo com as contradições que lhes afligem. Contra o capitalismo e a favor do pagamento da dívida histórica por meio da economia de mercado. Me reparem, me deixem entrar de novo na roda da fortuna, no capital que domina todos vocês, do qual vocês são parte e não conseguem escapar; desumanizados para humanizar outras coisas, qualquer coisa. Vamos, me reparem e me humanizem também. Eu mereço uma segunda chance.


É impossível voltar atrás. Só resta a violência e a destruição de todos os monumentos colonizadores, de todos os homens a serviço do mercado. Derrubem a Europa e suas indenizações cínicas. Suas caravelas e seus heróis. Suas colonizações vendida como liberdade. Destruam as tragédias, e também as comédias e os melodramas. Nada de contemporizar com os monumentos da destruição de tudo que era “além-mar”. A arte periférica, apelidada de folclore, não deseja a moldura da metrópole. Silenciem as justificativas porque a justificativa por si só não vale nem o esforço de ser enunciada. Diz Mateus, no capítulo 9, versículo 16: «Ninguém deita remendo de pano novo em roupa velha, porque semelhante remendo rompe a roupa, e faz-se maior a rotura». Então o quanto ainda se pode investir no remendo das atrocidades históricas dessa civilização erudita, cristã e branca? “Vinho novo em odre novo” – e que nem a religião, com sua roupa puída, esteja fora do axioma cristão.
O esquecível, o apagado, o anônimo e o totem. O real na perspectiva do tempo, onde antes herói, hoje, paisagem. Onde antes homenagem e ruído, hoje ação pública e performativa que também se inscreve na história como monumento. O que resta é só o concreto?
Estátuas não nascem sozinhas, não se proliferam por meio da cissiparidade, não medram por suas próprias vontades. Elas são semeadas por muitas mãos, quantas, quais? Nenhuma delas dá conta de suas próprias histórias, suas glórias e assassinatos. Espada em riste, pose triunfante e superior. Uniformes, cavalos, armas e expressões vitoriosas marmorizadas. Hei, escultores monumentalistas, vocês estão vivos para admirar a queda da pedra, do bronze e de toda uma estética? Se sempre estamos pegando o trem do mundo em movimento, pela força do braço (Althusser, 1982), por que as estátuas deveriam ficar paradas com assento cativo? A história continua… E não aceita ser dividida entre o que se gosta e o que se odeia dela. O que é preciso guardar e o que deve sumir? Por que as atrocidades de uns merecem o pedestal, e de outros, a queda? Existe, por acaso, atrocidade do bem?

Photo © Mariana Chama

epílogo 01
A estátua do bandeirante Borba Gato ainda goza da sua pose, seu mosquete e sua praça sem bancos. Dias atrás ela foi vítima de um pixo e nada mais. Um vacilo do braço armado do Estado. Em breve alguém será punido pelo vandalismo, como antes punia o próprio Borba Gato, cumprindo o sonho do capital. Nada de estado mínimo, e sim o desejo concretizado de um Estado policial. Borba Gato possivelmente não sabia disso. Ou talvez já vislumbrasse em 1718. Um Estado com braço armado para salvá-lo da queda no futuro. Um Estado com braço armado e cúmplice na economia para deixar intocada a força da grana que ergue e destrói coisas belas (Veloso, 1978). Um Estado com braço armado para impor a obediência a todos que sejam contrário a injusta divisão dessa força.
O Estado é mais do que o Borba Gato, mas Borba Gato é mais poderoso que o populacho. O mundo das coisas se valoriza ao mesmo tempo que quem as constroem passa a não ter valor nenhum. Borba Gato é protegido pelo braço armado do Estado. Quem é o Estado? Como ele pode ser derrubado? Ele pode ser derrubado?


Lá está a turba, a massa, o uno primordial. Exagero, de fato. Homens e mulheres reunidos em uma performance pública conjunta para debelar uma estátua e mudar seu estatuto público performativo… É sempre mais excitante estar do lado certo da história, ainda que operando na mesma lógica econômica que gerou esses monumentos. Mas problematizar é vício, e estanca. Problematizar faz de todos nós covardes, e empreitadas de vigor e coragem, problematizadas demais, saem de seu caminho, perdem o nome de ação – poderia dizer o Bardo Inglês do século XXI. Ou ainda dentro das paráfrases, essa vilipendiada do historiador Brendan J. McConville (2020): podem até conseguir derrubar diversos símbolos da tirania e do racismo em suas cidades e vilarejos, mas acabar com a tirania e o racismo dentro de cada um é tarefa bem mais difícil. Estar do lado certo da história é mais fácil na performance pública coletiva. Lá está a turba… Peço licença para uma anedota histórica!
A grande estátua do Rei George III – feita de chumbo sólido, adornada com ouro, pesando mil e oitocentos quilos e fixada num colossal pedestal de mármore – foi derrubada por uma multidão (ou por 40 soldados – a depender da versão da história) na cidade de New York, em 9 de julho de 1776. Apenas cinco dias depois da independência dos Estados Unidos da América. A mesma estátua que alguns anos antes havia sido inaugurada com pompa e circunstância, como agradecimento ao rei pela revogação da Lei do Selo, uma espécie de imposto sobre as mercadorias da até então colônia inglesa. Após a queda, uma boa parte do chumbo do que era a estátua do rei foi derretida para produzir 42.088 balas para mosquete. Fim da anedota histórica.
Sim, é mais ou menos fácil derrubar uma estátua, um ícone, um totem, um signo da opressão imposta pelos homens aos diferentes povos. Ora, não é preciso ir muito longe para perceber que as estátuas que caíram na história passada e recente representam em quase sua totalidade: homens brancos. Difícil mesmo, é derrubar o homem branco.

epílogo 02
Certa ocasião, era quase noite de um dia que não sei precisar muito bem. Em mim já não cabia nenhuma esperança porque ainda que seja a última a morrer, o tempo é impiedoso quando a executa. Na hora precisa, entre o fim do sol e o começo das trevas, alguém em mim escalou. Eu podia sentir o seu hálito quase como um sopro divino, que também esperei por décadas. Seus olhos conferiram as minhas dobras, as reentrâncias e a minha camada de pele verde esmerdiada. Ele percutiu os nós dos dedos no meu cabelo plúmbeo para enfim constatar minha oquidão… “É ELE”, gritou como Arquimedes. E era eu, descoberto enfim. Relançado à vida e à infâmia. Em seguida o desconhecido saltou do meu colo e pude sentir o pequeno tremor subir pelo meu pedestal quando seus dois pés encontraram o chão da praça. Ele era forte, pesado e correu sem olhar para trás. Quem era ele? Uma quimera, um pesadelo, um delírio, um indigente, um craqueiro? Queria ele reescrever a minha narrativa? Não esconder os traumas, o arrasamento e a ferocidade da minha trajetória? Narrar a voz da vítima, do perdedor? Quem era ele? Uma quimera, um pesadelo, um delírio, um indigente, um craqueiro?
Era o anjo da história que eu descobriria um pouco mais tarde.
Quando voltou não estava só, era um bando. Cabeças cobertas, olhos à mostra. Tinta, marreta, corda… Deus, eles tinham o arsenal completo. Meu regozijo duplo. Exterminador no passado, esquecido no presente, destruído no futuro. O que fiz não seria sublimado, meus dias de mictório e descaso finalmente chegariam ao fim. Eu era de novo odiado. Deixava enfim de ser uma pedra de bronze, estanho e chumbo desgastada. Fremi quando a tinta que jogaram escorreu pela minha face. Uivei à primeira marretada, ainda que o estrago tenha sido desprezível. Estava já antevendo o êxtase do gozo ao sentir a corda no meu pescoço, eu iria cair… Sentia também o regozijo dos encapuzados ao tentar me derrubar puxando desajeitadamente a corda… Ora, não poderia ser diferente. Se imaginarmos que estátuas e monumentos fazem parte também da tradição poética, e sei com certeza que daqui a algumas poucas gerações, estátuas e monumentos – assim como árvores e flores – não existirão mais, então é preciso aprender a tirar prazer do próprio desaparecimento delas: das estátuas, dos monumentos e da flora. Sem prazer o homem não pode sobreviver! Eu já devaneava um futuro incalculável em que arqueólogos partiriam em busca frenética – e impossível – de desenterrar os escombros desse presente, quando ouvi o primeiro tiro. Gritos. Mais tiros. Mais gritos. Duas balas morreram no meu peito. Uma no meu olho. Aguentei como quem controla as cócegas. Cinco corpos no chão. O braço armado do Estado não brinca com a revisão histórica: gosta de manter as coisas como sempre foram. O monumento policial não é pedra sem deus. Eles se movem por toda a história. Os corpos vândalos no chão, não mais. Eu, rígida e fria, no meu pedestal, sem nenhum prazer. Os corpos vândalos sumiram, sem foto nos jornais – os mesmos em que figurei nas capas.
Exceto alguns curiosos de ocasião, não foram necessários mais de dois meses para que eu fosse novamente transformada em pedra esquecida, cagada pelas pombas – as únicas a me fitar serenamente – que volta e meia estão em repouso nos galhos das árvores da Praça da Estátua [3].

Notes
[1] “the CIVIL warS: a tree is best measured when it is down” é uma ópera criada no início dos anos 1980 pelo diretor estadunidense Robert Wilson com música de Philip Glass, David Byrne, Gavin Bryars e outros. O vasto trabalho de cinco atos nunca foi executado na íntegra. Obs.: a livre tradução do título para o português é do autor.
[2] A partir do século 17 as terras do interior do Brasil passaram a ser rotineiramente exploradas. O desbravamento e povoação dessas terras foram iniciados por expedições pioneiras chamadas de Entradas e Bandeiras. As Entradas geralmente eram expedições oficiais – organizadas pelo governo da autoridade colonial. Já as Bandeiras tinham motivação particular – organizadas por colonos que se estabeleceram nos povoados. Ambas foram expedições organizadas com o propósito de procurar riquezas minerais, tais como ouro, prata e pedras preciosas. Objetivavam também caçar e apresar índios para escravizá-los ou localizar e destruir quilombos. Os bandeirantes podem ser identificados como homens que participavam das duas expedições. (nota redigida a partir do site UOL Educação).
[3] Esse texto foi inicialmente inspirado no conto “A Ponte”, de Franz Kafka.

Referências
Althusser, L., A corrente subterrânea marxista do materialismo do encontro. In: Crítica Marxista, UNICAMP-IFCH, Campinas, Brasil, 1982.
Berardi, F., Depois do futuro, Editora UBU, São Paulo, Brasil, 2019.
Coli, J., Opinião – Jorge Coli: Se Eliminarmos Estátuas Que Julgamos Ofensivas, Reformaremos O Passado. [online] Folha de S.Paulo, 2020.
McConville, B., In: National Geographic – Homepage. [online] National Geographic, 2020.
Prado, A., Poesia Reunida, Editora Siciliano, São Paulo, Brasil,  2001.
Sandler, D., In: Derrubar Estátuas Não Significa Esquecer, Mas Refletir Sobre O Passado, Diz Pesquisadora. [online] Folha de S.Paulo, 2020.
Sinha, M., In: Quando As Estátuas Caem Do Pedestal. [online] EL PAÍS, 2020.
Veloso, C., Sampa. [Compact Disc], CBD Phonogram, Rio de Janeiro, 1978.
Young, J., The Texture Of Memory, Yale University Press, New Haven, 1993.

Carlos Canhameiro é diretor, dramaturgo e ator. Trabalha há mais de 15 anos em São Paulo onde criou dezenas de peças com diferentes artistas e coletivos teatrais. É integrante fundador da Cia. LCT e da Cia De Feitos, além de artista-parceiro da Cia. Teatro de Riscos e Cia. 4 pra Nada. Tem doutorado em artes pela Unicamp (universidade onde também fez mestrado e graduação em artes cênicas). É pai do Lucas e da Nina e acredita que a maneira como lidamos com as crianças diz muito (ou tudo) do presente em que estamos inseridos.